quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Sobre vazios, estradas e fins

Ela sempre foi intensa, seu caminho repleto de flores e frutos.Não conhecia nem a escuridão, nem o ermo. Ela sempre foi mar, profunda e bela. Não sabia o que era seca, nem turvo, nem turba. Ela sempre foi música, muitos instrumentos, harmonia e alegria. Não sabia o que era surdez ou infelicidade.Ela sempre foi arco-íris e aurora. Não conhecia nem a completa escuridão, nem a solidão.
Já passara por tempestades, por invernos severos. Já vivera pausas silenciosas e breves tristezas. Conhecia o cinza. Mas para ela o horizonte era sempre colorido. Acreditava no amanhã, no amor, nas pessoas.
Já tropeçara, já machucara a si e a outrem, mas confiava plenamente na profundidade de suas águas e no sabor de seus frutos. Acreditava que não existia problema sem solução e dor sem fim. Não havia vida sem aurora e brisa e, dessa forma, sempre encontrava os caminhos, as pontes, os sons que a religavam ao ser amado- independente da dor.
Nunca guardara um só espinho em seus armários, suas iguarias eram poéticas e leves. Suas dores, quadros pintados na parede que sempre ensinavam, mas nunca determinavam seus fins.
Ela não conhecia o fim, só a transformação.  O recomeço. O reencontro. Quem olhava para ela pensava que era possível voar. Seu sorriso iluminava e sua alma se expandia. Independente da dor.
Tinha o dom de encontrar na alma amada a matéria de reconstrução de si e do outro. Vivia o hoje crendo na chegada doce, sutil e certa do amanhã.
Assim passou a vida por tempo indeterminado...entre pontes, mares e jardins. Muitas reconstruções, tantos quadros...mas sempre com música e horizonte...
Um dia, porém, sentira uma dor singular. No seu jardim mais belo, no mar mais profundo. Percebeu -se cega.  Perdera as asas. Seus olhos conheceram pela primeira vez a escuridão e o silêncio. Sim. Nesse dia a dor não virara nem quadro nem poesia. Ficou ali e estabeleceu seu reinado de escuridão e silêncio. Aquela dor não tinha arte, ela era pura e oca. Pior, parecia ser sem fim.
Ela ali parada, quieta, extasiada. Tentando pensar, tentando encontrar um caminho, uma estrada. Um som. Diante daquela dor o mundo transformara-se, não era melancolia, era só escuridão. Passou um tempo ali. Abraçada com a dor.  Envolta por suas raízes e galhos secos. Mas cansou. Resolveu retirar -se. Sem aviso prévio, sem gritos ou gemidos. Respeitando o silêncio, arrancou os galhos de si e seguiu em busca de paz, luz, música, poesia.  Queria horizontes e jardins. 
Seguiu sem olhar para trás, seguiu- pela primeira vez- sem falar de amor ou de cor. Só seguiu.
Deixara no caminho flores tão belas, mares tão profundos... Deixara tantas construções e projeções, deixara também alguns quadros...por muito tempo não sentiu falta de nada. Só queria se livrar da tal dor. Passou por outros jardins, construiu novas casas, navegou novos mares. Quem olha para ela, pensa até que é mais feliz.  Aprendera a cultivar ainda mais o amor, a valorizar ainda mais cada som, cada ser, cada sim. Reconstruíra suas asas com penas  e brisas variadas.
Mas a saída do jardim  deixara uma saudade. Saudade intensa.  E vez por outra ela olhava para trás.  Olhava com os olhos doces e infantis de outrora. Olhava com a esperança de revivê-lo. Olhava desejando que a dor tivesse morrido asfixiada em seu próprio silêncio e escuridão. Em sua lama fétida e rasa. Olhava e esperava a hora da reconstrução.
Você já amou alguém? Já amou tão intensamente a ponto de acreditar que nada poderia destruir as pontes e mares que vocês construíram juntos? Você já apostou tão alto em um amor a ponto de não ter medo de ir, pois sabia que poderia voltar? Já viveu essa ilusão, a ilusão do sem-fim?
Quando tudo nela estava reconstruído, quando já voltara a amar a si mesma e a outros mais. Quando em sua vida só havia luz, música, flores e poesia. Quando os quadros estavam mais artísticos e menos frequentes, nesse momento ela resolveu voltar. Retomar seu jardim preferido. Enfrentar a terrível dor.
 Nesse dia, ela foi, como sempre, sem medo. Como sempre, acreditando no horizonte, nos mares e flores que cultivara. Foi limpa, de asas abertas, sorrisos e cânticos nos lábios. Foi levar o seu amor.
Ah! Nesse dia, ela conheceu o fim e o deserto. Nesse dia ela entendeu que o amor pode adoecer e morrer. Nesse dia, ela olhou naqueles olhos que foram tão seus. Procurou os caminhos que plantara, uma viela qualquer, uma hortência, uma gota de água límpida. Nada. Foi isso que ela encontrou: o nada.

Ela agora entendia, para ela o nada não era mais “uma palavra esperando tradução “. O nada era o deserto e o fim. Não havia caminho, não havia cor, não havia amor. Não havia ódio, nem revolta, nem tristeza... era o nada. O seco, profundo, severo, triste e escuro nada. Oco, sem som. Um mergulho no vazio, um encontro com a escuridão. 
A dor vencera e foi tão forte que anestesiara e matara tudo. Não havia como construir pontes, não havia como cantar ou compor. Naqueles olhos amados que abrigara campos tão seus, hoje morava o nada. E ele não ama ninguém!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Inveja



De todos os pecados capitais, eu sempre achei a Inveja o mais ardiloso, sorrateiro e - quiçá - o mais perigoso dos sentimentos.
Pare e pense comigo: a Ira e a Gula são imediatistas, impulsivas. Suas atitudes pertencem ao presente, ao agora. A Avareza e a Vaidade são cegas ao próximo, seu  foco está no próprio umbigo.  A Preguiça e a Luxúria são uma reunião dessas duas características: impulsividade imediatista e vistas somente para si mesmo.
A Inveja não, ela é paciente e meticulosa, seus olhos estão sempre no outro e ela leva de seu alvo a doçura e a beleza. É disso que ela se alimenta.
Se pudesse descrevê-la, diria que é uma virgem de olhar doce e olhos sombrios. Cobre-se com um vestido de seda lilás. Tudo nela - ao olhar displicente e confiante - inspira compaixão. Ai de quem cai nessa armadilha! Pobre de quem confia e ama um invejoso.
A Inveja tem um beijo doce, sonso e tudo nela é muito raso, embora aparente profundidade e nobreza. Seus olhos estão sempre abertos, ela nunca descansa.  Anda descalça, seus passos são leves e firmes - ela sempre sabe para onde vai e sempre trabalha sozinha.  Tal como um vampiro, a Inveja só vai embora quando leva de você a sua alma.
Uma vez ouvi uma definição interessante sobre esse tema: “A Inveja não quer o que você tem, ela quer que você não tenha.”
É isso. A Inveja é o toque diário de ruína na sua vida.
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Ele era confiante, pensava que conhecia a alma humana. Tinha uma família que amava, morava longe dela porque não se entendia bem com a esposa. Mas era feliz. Vivia com a certeza de ter para onde voltar e exercia a liberdade que tanto amava.
Sua vida era regada do brilho lunar e dos odores alcoólicos - era um boêmio convicto! No cotidiano, era um ser caridoso e atencioso, o que lhe rendia amigos fiéis.
Ser feliz não é permitido. Nesse mundo cinza, qualquer cor ofusca os olhos de quem não quer ver seu próprio jardim.
Em um de seus retornos boêmios, encontrou a responsável por manter seu barraco em dia - limpo e organizado como ele gostava. Ele sempre sorridente lhe desejou um bom dia e esparramou sua felicidade no colchão. Ligou para família conferindo se tudo estava em paz e dormiu o sono dos justos.  A verdade é que não guardou nem o nome, nem a face da ajudante doméstica. Mas ela, ela o viu e ouviu. Quem inocente olhasse diria que o amou. Mas...um olhar mais atento, veria que o foco dela não era nele e sim em sua esposa. Havia uma foto no criado-mudo ela e os três pimpolhos de quem ele tanto se orgulhava.  Eram a certeza da vida dele, o porto seguro, a paz.
Ela imaginava como aquele quarteto da foto deveria ser feliz e não se conformava por eles existirem. Intimamente alimentava o desejo de arrancá-los dali, da foto, daquele homem, da vida dela.
Os anos passaram, mais de uma década, e com eles a distância entre a família e o boêmio aumentava na mesma proporção que a mulher tornava-se cara e necessária  para ele.

O fato das ligações e viagens estarem cada vez mais raras a deixava bem feliz, mas não plena. Ela queria tirar aquele quarteto da vida dele, queria que eles deixassem de existir. Tornou- se amiga dos amigos; uma grande amante, a melhor companheira. Não conseguira ter filhos e isso era sua tormenta, mas preenchia na vida dele todos os espaços possíveis para que o retrato/ o porto fossem esquecidos.

Obteve grandes vitórias, casou-se com ele com a bênção da família e dos amigos. Tinha tudo para ser a mulher mais feliz. Mas não era. Por que não era?
Ele já perdera a luz que possuía nos idos anos. Transformara-se em um homem taciturno e sofrido.
Ela já tinha levado dele a sua alma, no entanto ainda era pouco. Não conseguia ser feliz. Guardara a foto, olhava para ela todos os dias. Aquele quarteto brilhava e, segundo notícias, seguia brilhando... ela não conseguia ser feliz. Não conseguia tocar aquele brilho, ele nunca permitira que ela chegasse perto.
Mas ela precisava daquela luz, era isso que a alimentaria... Estava sempre de olhos abertos. Pensara que retirá- lo de lá seria suficiente. Não foi.
Ah! O século XXI! As redes sociais e seus milhões de olhos, bocas e braços! É lá que vou sugar sua energia, é lá que verei e emolarei cada pequena estrela do seu dia!
A Inveja nunca dorme.
Choveu por dias com vento forte, mas o sol renasceu tão reluzente quanto sempre.
Dessa vez não deu, querida .
A tecnologia é uma faca de dois gumes!
Contenta-te com tuas meias verdades, felicidades, vida.
Por hoje estamos blindados e brilhantes.