A manhã estava
abafadamente nublada. Trânsito parado, sono e impaciência. Pela janela a vida
passava pesada e lenta. Naquele dia a rotina atingira grande peso e sorria do
nosso desânimo. De repende, numa dessas
surpresas non gratas que o destino nos apronta, a sorridente rotina é esmagada
por um corpo, um jovem corpo no chão. Um
tiro na cabeça. Grossa e indetidamente escorria a vida daquela pequena fenda
craniana. Multidão - observadora curiosa e alheia - queria apenas estar a par
da notícia, participar da cena que seria o assunto do dia.
Eu fui
arrebatada daquela janela e mergulhada naquele vermelho-vida que se despedia em
um silêncio esmagador. O que teria
levado o adolescente àquela cena inopinada? Que caminhos percorrera aquele
jovem corpo para merecer ou receber tal fim? Que histórias, lágrimas, desejos e
sonhos escorriam dando seu último suspiro naquele que já se transformara em um
pequeno e rubro lago?
Parecia que
podia ver afogado naquele sangue festas e sorrisos, frutos quiçá doces, beijos
quentes, madrugadas brilhantes, um futuro em botão que falecia numa apneia
infinita. Uma pequena fenda que levava palavras e suspiros esvaindo perdidos,
anônimos, inertes e insignificantes nas gotas de sangue que banhavam a
pavimentação quente. Faltou-me um pouco
o ar, um mal-estar repentino domava-me. Desejei o peso da minha rotina,
consistentes lágrimas escorreram por minha face. Gostaria de devolver o cinza
para aquela manhã, o cheiro de asfalto molhado e a tristeza do igual.
Senti-me
banhada daquele cheiro de sangue, daquele luto sem nome, mas com face e sem
amanhã. A vida também me escorria em vermelho. Morri, mas precisei seguir com o
dia.