“ Que a chuva caia como uma luva, um dilúvio, um
delírio, que a chuvas traga alívio imediato..." Engenheiros do Hawaii |
A chuva é o fenômeno natural mais ambíguo de todos. Em sua
essência, a dualidade da paz e das trevas...a chuva, uma metáfora divina do
humano e da vida.
Lembro-me de nossos primeiros momentos... chuva leve, brisa.
Daquelas que molham, mas não encharcam. Daquelas que abrandam o calor e
suavemente apimentam o dia. Chuva que cai, mas não é fruto de densas nuvens, é,
apenas, um doce presente divino, geralmente acompanhado de um arco-íris
quase translúcido, mas cheio de cor.
Éramos assim. Em nossos terrenos úmidos, as flores delicadas da paixão.
O tempo passa e seu poder de transformação por vezes é
árido. Nossas garoas foram se transformando em chuva mais densa, mais forte,
chuva que molha, deixa resfriado, filha do cinza que se acumula. Mas ainda
tínhamos o calor dos dias, o pólen, e muitas vezes, a chuva vinha como o alívio
e a liberdade que precisávamos para recomeçar e os dias seguintes eram de cores
e sons. Depois da tempestade, a bonança do reencontro.
O tempo, o hábito, a certeza...olhos acostumados, rotina, dias
sem brilho, céus nebulosos e fomos nos perdendo em labirintos e as doces chuvas
tornaram-se dolorosas tempestades que nos inundavam e afastavam, que matavam o
solo, que não apagavam o cinza e não geravam arco-íris.
Fomos naufragando naquela que um dia foi o símbolo de nossos
sonhos e liberdade. A chuva.
Talvez se eu fosse um pouco mais solar, um pouco menos espinho.
Talvez se você fosse um pouco mais som, um pouco menos vinho. Talvez você fosse
um pouco mais sim e eu um pouco mais não. Quem conhece os elementos geradores
das nuvens? Quem conhece os caminhos da eternidade?
O horizonte que, a princípio, parecia tão longe e
atraente, mostrou-se abismo solitário. E entre silêncios fúnebres, trovoadas e
escuridão os dias escorriam.
Mas a chuva, a chuva é ambiguidade. E numa noite cinza, com
o coração em chumbo, deixei-me ir. Ouvi o som das gotas, deixei-me levar. Encharcado,
silencioso, mas sentindo, pela primeira vez em anos, a leveza do reencontro com
o eu.
Um táxi, uma mala, uma estrada só de ida. Gotas grossas por dentro e por fora dos vidros. Cinza.
Mas o horizonte já parecia atraente e não sei se em mim, no
céu ou em ambos, o arco-íris se derrama.
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